Heterónimos

Alberto Caeiro

“Vi como um danado”

 

Considerado por Fernando Pessoa como Mestre dos heterónimos e do próprio Pessoa ortónimo, Caeiro exprime e representa a visão marcadamente não-humana, primitiva e "pura" da Natureza e até do Homem. Despido da emoção (da subjectividade) e anulada toda a cultura (a Razão) que o Homem foi criando (Alberto Caeiro não possuía mais do que a instrução primária, era "guardador de rebanhos" e vivia num outeiro...), este heterónimo faz da pura sensação e do objectivismo (absoluto) o "ideário" da existência e da sua escrita. Uma poesia feita duma matéria habitualmente não-poética, em que a linguagem procura estar o mais próxima possível das coisas, das sensações, pois as ideias e os conceitos são um obstáculo ao puro sentir e ao puro viver. E as palavras, intencionalmente despidas de artifícios retórico-estilísticos, bem como o versolibrismo, procuram, assim, ser o espelho sem mancha dessa ingenuamente sábia "ciência de ver". Como o Mestre não tem preocupações de ordem metafísica e social (como acontece com Pessoa e com Álvaro de Campos), é a única criação pessoana que conhece a Verdade das coisas - porque não as pensa. "Com filosofia não há árvores, há ideias apenas"... Mas é precisamente pelo facto de a Verdade não ser transmissível, que melhor se compreende, por oposição, o drama de Pessoa-Campos.

 

“Além disso, fui o único poeta da Natureza – Sou o Argonauta das sensações verdadeiras” – Alberto Caeiro

 

Ricardo Reis

“Vi, pensei o que vi e concluí como um danado”

 

Educação num colégio de Jesuítas, formação em Medicina, expatriação no Brasil por ser monárquico, latinista e helenista, eis os dados biográficos essenciais que Fernando Pessoa nos deixou acerca deste heterónimo. A sua poesia (as suas odes) revelam um poeta que, sob a capa da mundividência paganista e do modelo poético horaciano, continua o "drama em gente" que o próprio Pessoa viveu. Essa imitação/recriação da Antiguidade é uma "resposta" ilusória, mas poeticamente eficaz, à assunção serena e comedida da condição humana. É por isso que o Destino, a Morte, a Glória, o Amor e a fugacidade do Tempo não passam de marcas indicadoras da inutilidade de tudo. Aceitar com a alegria de um consciente infeliz as coisas (feitas pelo tempo) é uma das atitudes típicas de Reis. O epicurismo e o estoicismo são o substrato filosófico da sua poesia, de sintaxe naturalmente alatinada e esteticamente de raiz neoclássica.

Segundo Frederico Reis, trata-se de um Epicurista Triste.

“Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.” Ricardo Reis

 

Álvaro de Campos

“Campos sente, pensa e sofre o que pensa...como um danado!”

 

É o oposto de Caeiro pelo drama ontológico que exprimiu, pela maior envolvência no Modernismo e por manifestar uma trajectória evolutiva da sua obra poética - cuja edição crítica (Poemas de Álvaro de Campos) foi publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda (Lisboa, 1992), sob a responsabilidade de Cleonice Berardinelli. Pessoa atribuiu a este célebre heterónimo alguns dados biográficos com interesse: nasceu em Tavira em 1890, formou-se em engenharia naval por Glasgow (não é gratuito o facto de estas cidades serem marítimas), e viveu inactivo em Lisboa. Costuma-se ver três fases na evolução da escrita de Campos: a primeira, a decadentista, é a que mais se aproxima da nossa poesia finissecular; a segunda, a modernista, corresponde à experiência de vanguarda iniciada com Orpheu; e a terceira é a negativista, na qual a angústia de existir e ser mais se evidencia e se radicaliza. É, por isso, o poeta pessoano que mais se multiplicou na busca incessante do Absoluto e da Verdade.

Segundo o próprio Fernando Pessoa trata-se do filho indisciplinado da sensação.

 

“A única compensação que devo à literatura é a glória futura de ter escrito as minhas obras presentes”.

 

 

Bernardo Soares

 

É um semi-heterónimo de Fernando Pessoa "porque - como afirma o seu próprio criador - não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade." Desde 1914 que Pessoa ia escrevendo fragmentos de cariz confessional, diarístico e memorialista aos quais, já a partir dessa data, deu o título de Livro do Desassossego - obra que o ocupou até ao fim. Há aspectos "biográficos" que o aproximam de Pessoa: é ajudante de guarda - livros em Lisboa e trabalha em escritórios modestos na Baixa pombalina. Se pelo carácter deambulatório se aproxima de Cesário Verde, se a sua prosa (tantas vezes poética), recheada de pensamento e de preocupações metafísicas, o irmana de Pessoa-Campos, se a sua escrita propriamente fragmentária e de tom diarístico, labiríntica e lúcida face à consciência de si e do Mistério (presente até o que há de mais insignificante) faz pensar no Húmus de Raul Brandão, podemos então olhar o Livro do Desassossego como um dos pilares da prosa moderna portuguesa.

Na carta escrita a Adolfo Casais Monteiro de 1935, Pessoa justifica o porquê de não considerar este heterónimo como os outros:

“O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Alvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as faculdades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio”.

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